segunda-feira, 29 de junho de 2009

DA GLOBALIZAÇÃO À BLOGOSFERA:

TRÊS VOOS RASANTES

SOBRE O CÉU DA CONTEMPORANEIDADE

Primeiro Voo

O mercado mundial é hoje uma realidade: não há dona de casa que não o saiba já, quando, com porte épico, desliza pelas «grandes superfícies» (oh! homérica expressão!) com o seu carrinho de compras. Ei‑lo pleno de produtos das mais variadas partes: das bananas da Colômbia à carne da Nova Zelândia, passando pelo bacalhau da Noruega, não tem conta o estendal multilingue de toda a mercancia do universo.

Mas não se trata apenas de um processo económico. Estamos perante uma dinâmica jamais vista de homogeneização cultural: uma americanização selvagem de hábitos e costumes. Assistimos até a uma espécie de colonização do imaginário à escala planetária, da qual, aliás, Hollywood é o melhor instrumento. Daí que as reacções contra o fenómeno da globalização juntem numa mesma amálgama militantes de extremos opostos: nacionalistas de direita e multiculturalistas de esquerda.

Eis, pois, a época em que o fluxo anónimo do capital financeiro, circulando à velocidade da luz, e as tomadas de decisão de gestores sem rosto das empresas multinacionais determinam — sem qualquer controlo democrático! — o destino da arraia‑miúda da Terra. Trata‑se do acontecimento que singulariza, de acordo com uma ontologia do presente, a nossa condição de pós‑modernos. Merece por isso realce a perspectiva de um importantíssimo filósofo moral do nosso tempo, segundo a qual «a forma como sobreviveremos à globalização (se lhe sobrevivermos...) depende da forma como reagirmos eticamente à ideia de que vivemos num só mundo» (Peter Singer). E porquê? «Na aldeia global, a pobreza de outrem rapidamente se torna um problema nosso: falta de mercado para os nossos produtos, imigração ilegal, poluição, doenças contagiosas, insegurança, fanatismo e terrorismo.»

Segundo Voo

Falar de heroísmo é correr o risco de ser mal entendido. O espírito do tempo, assumidamente hedonístico e democrático, mantém sob suspeita a figura aristocrática do herói, pelo facto de ela ter sido vítima de um rapto ideológico. Com efeito, ainda persiste a memória do seu uso nacionalista e fascístico. Na consciência do cidadão comum, os heróis, por definição, são os que morrem em nome de um ideal que se pretende superior à vida. Neles, a vontade domina tudo, devorando até o medo da morte. Hoje, porém, não temos heróis — dir-se-á —, mas apenas vedetas, que são instrumentos do capricho. (Bem podemos avaliar, pela respectiva direcção do olhar, a distância entre os dois tipos de humanidade: num caso, o primeiro, para cima, querendo respirar o ar difícil da montanha; no segundo, para baixo, em buscado aplauso fácil das massas. De um lado, a tragédia; do outro, a comédia.) Parafraseando uma personagem cujo nome não quero referir, busca-se esfomeadamente a fama de quinze minutos e despreza-se a eternidade, a qual lembra vagamente um cemitério de espectros: não suscita o desejo de aparecer sob o ângulo da luz mediática e intermitente dos holofotes da actualidade. Esta é, sem dúvida, a palavra‑chave da Época Contemporânea. (A notícia tomou o lugar do mito.) Donde o receio patológico da multidão: estar fora de moda! Daí a apoteose do imediato: o culto das experiências, novo negócio do século XXI! Ser herói, todavia, há-de significar, pelo menos, a coragem de viver para além do instante.

Tudo isto se concatena: o fim da literatura e o triunfo do jornalismo. O reino da tagarelice não poderia suportar o perfil austero da subjectividade heróica, que sempre anseia romper com o conformismo egossintónico. E fá-lo em nome de uma ideia maior do que o pequeno eu que a publicidade alimenta. Só chafurda em tal pântano egóico, de facto, quem tenha na chinela a medida do real. Numa outra instância, aliás, ter-se-á perdido a lição de Epicuro: a preponderância dos prazeres de longa duração (catastáticos, isto é, susceptíveis de um prolongamento indefinido) sobre os efémeros, ou melhor, cinemáticos, já que são sensíveis e inconstantes.

«Devido ao progressivo domínio do meio ambiente, o homem moderno, por força das coisas, deslocou o ‘estado do mercado’ da economia prazer-desprazer no sentido de uma hipersensibilidade crescente a respeito de todas as situações de estímulo negativo, ao mesmo tempo que a sua capacidade de prazer se foi embotando. Semelhante situação, por uma série de razões, origina consequências deletérias» (Konrad Lorenz). — Por exemplo: a delerricção da existência sob a aparência do tédio, a multiplicação dos comportamentos de risco gratuitos, a celebração mediática da vulgaridade e o culto do sucesso a todo o custo. O discurso do famoso etólogo austríaco tem toda a pertinência. É neste contexto histórico--cultural que se compreende a emergência do vedetismo, sucedâneo pseudodemocrático do heroísmo. Entre os heróis de Homero e as vedetas de Hollywood abre-se um abismo, cuja profundidade o cinema ilustra de uma forma tremendamente patética, quando Aquiles «de pés velozes» aparece, por fim, no ecrã gigante — e começa a falar inglês.

Terceiro Voo

Em todo o ciberespaço, novo Oeste, cresce à velocidade do colibri a comunidade dos cidadãos da blogosfera, território prenhe de sementes de uma democratização da palavra. Para o mal e para o bem, alcança agora a ágora os limites do mundo inteiro. Nela, pela disponibilização de ferramentas de uso fácil, tornou-se possível a construção de nichos de comunicação independente dos mecanismos de controlo institucional da opinião pública. Trata-se, segundo alguns, de uma nova fase de desenvolvimento da Rede. Para que possamos compreendê-la melhor, devemos conhecer a origem do fenómeno. A este respeito, vejamos o que nos dizem Hardt & Negri (cf. Império, pág. 332):

«A Internet, que começou por ser um projecto da DARPA (US Defense Department Advanced Research Projects Agency)e se alargou, de seguida, de modo a incluir o mundo inteiro, é o primeiro exemplo de uma estrutura em rede democrática. Há um número indeterminado e potencialmente ilimitado de nós interconectados que comunicam sem ponto de controlo central, e todos esses nós, independentemente da sua localização territorial, se ligam a todos os outros através de uma miríade de vias e articulações transmissoras. A Internet assemelha-se assim à estrutura das redes telefónicas e, de facto, integra‑as de uma maneira geral enquanto vias da sua própria comunicação, do mesmo modo que utiliza a tecnologia dos computadores nos seus pontos de comunicação. O desenvolvimento dos telemóveis e dos computadores portáteis, multiplicando ainda mais os pontos de comunicação da rede, intensificou ao mesmo tempo o processo de desterritorialização.O propósito original da Internet era enfrentar uma ofensiva militar. Uma vez que não tem centro e praticamente qualquer uma das fracções pode operar como uma totalidade autónoma, a rede pode continuar a funcionar até mesmo depois de uma sua parte ter sido destruída. O mesmo elemento concebido para garantir a sobrevivência, quer dizer, a descentralização, é também o que torna tão difícil o controlo sobre a rede. Uma vez que não há ponto na rede que seja necessário à comunicação entre os outros, é difícil, no seu âmbito, regular ou proibir a comunicação entre os diversos pontos. É a este modelo democrático que Deleuze e Guattari chamam um rizoma, uma estrutura em rede não hierárquica e não centralizada.»

A desterritorialização inerente à Rede, modelo totalmente horizontal, sublimou-se, sem dúvida, nesta flor inesperada: a blogosfera. Contudo, perante a multiplicação bilionária de blogues, urge reflectir sobre o seu impacto na paisagem mediática. Assistimos, por exemplo, à dessacralização da figura do jornalista. Não há quem não lhe queira vestir a pele. Tanto a produção como a divulgação de notícias e opiniões deixaram de ser propriedade exclusiva dos media tradicionais: imprensa, rádio e televisão. Com efeito, sem nenhuma cobertura institucional, cada um nós, sob os auspícios da Rede, poderá alimentar a formidável corrente da actualidade. A exigência de interactividade tornou-se o «grito de Ipiranga» dos internautas. Acabou o monopólio dos meios de difusão de informação! A mera recepção de mensagens já não satisfaz o cliente de serviços audiovisuais. Em pleno século XXI, digamo-lo cruamente, o exercício da cidadania não se reduz à defesa dos direitos do consumidor. Há uma frente de batalha que se abre em torno da garantia de acesso aos meios de produção virtual. O risco do analfabetismo informático, com o qual se conjuga o da exclusão do acesso à Rede, é demasiadamente sério para não ser tido em conta pela agenda política dos nossos governantes. Devemos lutar, porém, contra a redução eleitoral destes problemas, combatendo o discurso edificante e espumoso das palavras de ordem.

Mas nada disto está isento de riscos. Ainda estamos longe de uma regulação saudável do ciberespaço! A proliferação das fontes, sob a capa inviolável do anonimato, gera o ruído e a irresponsabilidade. Por outro lado, a fragmentação dos universos de referência (resultante do recolhimento de cada um na sua concha internáutica) produz incertezas cognitivas e axiológicas, desencadeando as mesmas, em última instância, um processo de erosão progressiva da coesão social. Talvez esteja aqui um dos maiores desafios da democracia, cuja crise de legitimidade, sendo hoje inegável, não deve ser varrida para debaixo do tapete da globalização. Contra os arautos do neoliberalismo triunfante, repugna-nos a ideia da subordinação da política aos ditames da economia. Seria a inversão de todos os valores, com a inevitável administração das coisas a cavalgar a autonomia dos homens.

Dada a natureza multipolar e acêntrica da Rede, a sua simples existência constitui uma promessa de liberdade. Quando apelamos para a sua regulação, não pretendemos eliminá-la nem subordiná-la aos interesses dos governos e empresas multinacionais. Esse perigo, aliás, é bem real: «está já a caminho uma centralização maciça do controlo através da unificação (de facto ou de jure) das componentes fundamentais da estrutura de poder da informação e da comunicação: Hollywood, Microsoft, IBM, AT&T, e assim por diante» (op. cit., pág. 333). Apesar de tudo, perfilhamos a esperança de que, no domínio do ciberespaço, se mantenha a blogosfera, pelo menos, como núcleo de pensamento radicalmente livre. Em relação às auto-estradas da informação, não são aceitáveis portagens arbitrárias. Embora as «razões de Estado», o moralismo serôdio e a ganância do lucro tendam a impor-se junto da opinião pública (ou melhor: publicada), vale a pena insistir na urgência de uma circulação mundial das ideias, libertando-as da canga de putativas «taxas alfandegárias» da mais miserável espécie. É tempo de levantar a voz: «Cibernautas de toda a blogosfera, uni-vos!»

Eurico de Carvalho

«Da Globalização à Blogosfera: Três Voos Rasantes sobre o Céu da Contemporaneidade». In O Tecto. N.º 61 (Ano X). 2008 (Jun.), p. 13.


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