quarta-feira, 30 de setembro de 2009

DEFESA DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA


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15 de Setembro de 2009, pelas 10h30
Sala de Reuniões da Faculdade de Letras do Porto
Ex.mo Sr. Professor Doutor Adélio Melo,
Ex.ma Sr.ª Professora Doutora Maria Manuel Jorge,
Ex.ma Sr.ª Professora Doutora Paula Cristina Pereira,
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Antes de mais, quero agradecer a Vossas Excelências a generosidade com que disponibilizaram tempo e atenção para a leitura da tese que, aqui e agora, me cabe defender.
Penso que não será de somenos invocar, desde já, o motivo subjacente à minha escolha temática. Com efeito, o acto de escolher, por definição, não é neutro nem inocente. Assim, se elegi a publicidade como tema da presente Dissertação de Mestrado de Filosofia Moderna e Contemporânea, isso deveu‑se, por certo, à consciência que tenho do que há‑de regular o exercício do filosofar. Ora, por muito audível que ainda seja, pelo vulgo, o riso da criada de que nos fala Platão, no Teeteto[i], o filósofo não é, de modo algum, alguém que tenha os pés nas nuvens ou, se preferirem, um nefelibata. Pelo contrário, sendo um homem do seu tempo, nele mergulha as raízes da sua reflexão, cujo movimento intrínseco, no entanto, o eleva acima do sensível. Mas este movimento intelectual não é gratuito nem vazio, tanto mais que a procura do inteligível se faz sempre em nome da inteligência do mundo em que vivemos — e no qual, de resto, a publicidade, pela sua omnipresença, se constitui como fenómeno incontornável.
Não estaremos nós, porém — perguntar‑se‑á —, perante um objecto cujo perfil imediato apela, de facto, para um tratamento psicossociológico? À semelhança do «amigo das Formas platónicas», cujo pensamento acaba por tropeçar em certas coisas que parecem ser ridículas e desprezíveis (por exemplo: o cabelo, a lama e o lixo[ii]), não corremos também o risco de nos enredar nas grossas malhas da mera empiria? Sem querer negar a pertinência destas interrogações, certo é, em todo o caso, que a sua resolução cabal só se pode instituir com o desdobramento total do conteúdo da própria tese. Mas neste momento, pelo menos, devo afirmar que tanto me repugnou a ousadia do voo metafísico como a interminável recolha documental. Para colorir as duas ideias com as cores da mitologia grega, apraz‑me até dizer que rejeitei, em boa verdade, quer a figura solar de Ícaro, quer a de Sísifo, cuja sombra tutelar, aliás, sob a capa da psicologia e da sociologia do consumo, nunca se tornou susceptível de perturbar o desenvolvimento filosófico do meu programa teórico.
Para uma síntese desse mesmo programa, penso que basta traçar as suas linhas gerais. Na realidade, o curso reflexivo cumpriu‑se em três partes: à primeira, a partir de Marx, correspondeu a irrupção da abertura teórica susceptível de abrigar o lugar contemporâneo do fenómeno publicitário, i.e., enquanto espaço de mediação entre a produção e o consumo; à segunda, por sua vez, e sob o pano de fundo de uma crítica de Baudrillard, coube uma abordagem do consumismo que não ficasse cativa do idealismo, ou seja, da perda de «linha de fronteira» ontológica que separa o signo comercial do objecto de consumo; e à terceira, finalmente, e em conformidade com uma recuperação idiossincrática do conceito de espectáculo de Guy Debord, atribuí a tarefa de assimilar a publicidade à condição de discurso mítico da sociedade de consumo — e de cuja eficácia retórica a marca se configura, sem dúvida, como incontornável dispositivo semiótico. Todavia, não se veja neste esboço senão o que vale, i.e., enquanto esquema susceptível de orientar o auditório, não esgotando, pois, a riqueza de conteúdo deste estudo, tanto mais que o entrecruzamento das razões e a constante retoma das noções críticas de base não se compadeceram, de modo algum, com a linearidade da sequência que acabei de referir.
Realmente, as referências teóricas fundamentais do meu trabalho foram os autores d’ O Capital (cuja primeira edição data de 1867), d’A Sociedade do Consumo (obra de 1970) e d’A Sociedade do Espectáculo (um livro singularíssimo, aliás, que veio à luz em 1967, ou seja, cem anos depois d’O Capital). (São obras emblemáticas, como é sabido, sendo ainda insubstituíveis, julgo eu, sob a perspectiva de uma crítica radical do capitalismo.) Há que dizer, contudo, e tendo em vista, à partida, desfazer quaisquer equívocos, que procedi a um uso instrumental (isto é: sem os zelos serôdios dos ortodoxos) do aparelho teorético de Marx, Baudrillard e Guy Debord. Além do que, naturalmente, a dissertação não almeja ser a putativa soma de três monografias possíveis. É por isso que assistimos à utilização estratégica das noções centrais — que se associam a esses pensadores — de valor, significante e espectáculo. Vejamos, então, ainda que sumariamente, claro está, o modo como se tornou viável a respectiva articulação conceptual.
De acordo com a fórmula universal do capital (D — M — D’), o valor, no seu processo de valorização, transforma‑se num «sujeito automático»[iii], ao qual se subordina, alienando‑a, toda a vida social, que assim se torna cada vez mais abstracta. De uma forma deliberadamente simples e popular, poderíamos dizer que tudo gira em torno do dinheiro.
Na sua qualidade de significante, o objecto de consumo, segundo Baudrillard, não ganha sentido a partir da utilidade; pelo contrário, situando‑se para além dela, constitui‑se como diferença que unicamente significa no interior de um código — o da produção ideológica das necessidades —, o qual, reificando as relações entre sujeitos, regula a produção e distribuição do prestígio social. De uma forma deliberadamente simples e popular, poderíamos dizer que tudo gira em torno das marcas.
Para Guy Debord, por sua vez, o espectáculo, longe de ser simplesmente o mundo que se oferece à visão, impõe‑se, de facto, como «visão do mundo» conforme ao capitalismo — e em conformidade com a qual, aliás, só aparece o que é bom e tão‑somente é bom o que aparece[iv]. Consequentemente, enquanto afirmação superlativa da aparência, o espectáculo também afirma a vida social como mera aparência, ou seja, procede à sua negação visível[v]. De uma forma deliberadamente simples e popular, poderíamos dizer que tudo gira em torno da imagem.
Por ser a figura visível do valor, o dinheiro é, sem dúvida, a imagem de marca de uma sociedade que, tendo como relação social dominante a que liga os homens enquanto possuidores de mercadorias, promove a coisificação das relações sociais e a personalização das coisas, cuja utilidade, de resto, pelo facto de o trabalho ser refém do capital, se subordina necessariamente às suas possibilidades de troca. Para as realizar e expandir, porém, num regime concorrencial de bens e serviços, torna‑se manifesta a urgência da propaganda comercial.
Ora, da articulação dialéctica das partes constitutivas deste estudo, resultou a formulação de três proposições essenciais acerca da natureza e função da publicidade:
1ª) a publicidade, enquanto espaço de mediação entre a produção e o consumo, contribui objectivamente para a longevidade do capitalismo, na medida em que produz um amortecimento estrutural, por assim dizer, dos efeitos críticos e cíclicos (os fenómenos de superprodução e subconsumo) da disjunção intestina entre compra e venda das mercadorias — ou, por outras palavras, da cisão da «unidade orgânica», pré‑capitalista, entre produtores e bens;
2ª) a publicidade, enquanto suporte fenomenológico das marcas, institui‑se como uma autêntica «fábrica de subjectivação» dos indivíduos, o que lhe dá o estatuto, atendendo à crise da família e da escola, de agência de socialização crucial do nosso tempo;
3ª) a publicidade, mais do que uma forma particular do sistema espectacular vigente (à semelhança da televisão, do cinema, da Internet, etc.) surge, acima de tudo, como a sua linguagem concreta e universal, sendo, por isso mesmo, o discurso mítico da sociedade de consumo.
Penso que a presente exposição é suficiente para compreender que não poderia ter sido linear o caminho analítico que segui, porquanto implicou a necessidade de reconduzir o objecto de estudo para as suas condições de possibilidade. Abracei, portanto, a ideia de que todo o discurso sobre a publicidade — que não se deixasse reduzir a um mero exercício edificante — não podia prescindir de uma crítica do capitalismo. Daí que, por outro lado, seja devedor, em grande medida, do espírito de Marx, o ar que se respira na minha tese. Mas Marx, naturalmente, nunca poderia ter previsto a extrema importância hodierna do discurso publicitário para a sobrevivência do capitalismo. No seu tempo, é certo, tanto a conquista de novos mercados como a exportação da «luta de classes» (i.e.: a deslocação das tensões internas para o exterior), por força do colonialismo europeu, desempenharam um papel inegável, sob o ponto de vista da expansão mundial do sistema capitalista. Por sua vez, a publicidade, ao colonizar os espíritos — que são cúmplices da sua servidão psicotrópica —, intensifica a mercantilização de todas as esferas da experiência e promove, pela via de uma «descontaminação» ideológica do perfil interclassista da sociedade de consumo, a despolitização do campo social e, por conseguinte, a diluição da «luta de classes». É por isso que não assistimos à sua intensificação gradual, como seria de esperar, de acordo com a previsão marxiana; pelo contrário, parece que o putativo «sujeito revolucionário» se deixou aburguesar, tornando‑se um agente passivo da sociedade de consumo. Além disso, o que seria, segundo Marx, um provável limite externo para o desenvolvimento do valor, ou seja, a capacidade social de consumo — enquanto realização do valor de uso —, foi totalmente deslocado, como é sabido, pela publicidade, cuja razão de ser radica exactamente na sua aptidão para gerar o consumo como estilo de vida. Em suma: o consumismo.
Se me fosse possível acrescentar algo ao trabalho que realizei, teria sido mais claro neste ponto, evidenciando, com maior ênfase, o contraste entre a previsão de Marx e a realidade dos nossos dias, porque aí se encontra, de facto, a enorme e séria razão de ser da aparência mitológico‑polémica, digamos assim, da conclusão da presente dissertação. Julgo que ela poderá despertar alguma perplexidade, sem dúvida, em certos leitores, por ser a confissão de uma crítica que, perante a corrupção capitalista da função simbólica, já não acredita na sua eficácia terapêutica. Com efeito, se não podemos senão consumir a própria denúncia do consumismo, isso significa que essa denúncia funciona unicamente como signo de distinção cultural. Trata‑se, claro está, de uma conclusão paradoxal. Na verdade, se a levássemos às últimas consequências, não caberia senão a quem fala a plena assunção do silêncio.
Eurico Carvalho


[i] Cf. Teeteto, 174ª.
[ii] Cf. Parménides, 130c‑d.
[iii] Cf. Marx, 1867, p. 179.
[iv] Cf. Debord, 1967, p. 20.
[v] Cf. Debord, 1967, p. 19.

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