quarta-feira, 4 de novembro de 2009

CENA DIDÁCTICA [XII]


 
O LUGAR DO ÓCIO



Um primeiro passo para a vera reflexão pode ser — simplesmente — a humílima tarefa de ouvir as palavras, retirando‑lhes o pó do hábito que nos cega para o seu batimento cardíaco. Auscultemos, pois, caro leitor, o coração de um antiquíssimo lexema impoluto, mas que hoje, infaustamente, se tornou presa da hábil demagogia da alegre tribo internacional dos tecnocratas. Queremos dar‑lhe a ver um signo helénico, scolή, que se tornou, pela via da sua latinização em schola, um termo universal, e cujas ressonâncias civilizacionais merecem a mais atenta escuta. Afinal, se prestarmos atenção à substância do étimo grego, será nosso o espanto, quando descobrirmos que o seu significado original aponta para a «ocupação de quem se encontra em descanso». Em si mesma, é verdade, num tempo que cultiva obsessivamente o trabalho, parece paradoxal a expressão. Qual poderá ser, de resto, essa actividade de quem permanece em repouso? Como pode estar activo um sujeito que, aparentemente, nada faz?
Avolumam‑se as perplexidades, porque vivemos num meio cultural que privilegia falsas oposições, de que o binómio lazer/labor constitui a súmula insuportável. Para que lhes possamos responder, urge imolar estereótipos e preconceitos mediáticos. Há todo um espaço mental atravancado pela velha mobília do «aparelho ideológico do Estado». Há que limpá‑lo, o que exige, pelo menos, a tremenda audácia cinzenta de um adversário hercúleo do dispositivo audiovisual de controlo cor‑de‑rosa das almas. Expulsemos, então, da nossa casa maior, a do pensamento, a criada de servir do poder! Não sejamos tímidos! Agarre‑se a senhora pelo colarinho da estupidez, dando‑lhe como destino o caixote do lixo! Realmente, para devolver o brilho original do santuário da cultura, não nos resta senão a longínqua possibilidade de uma ruína do espectáculo.
Assim, se quisermos dar razão à língua natal do «amor ao saber», ter‑se‑á em mente a escola como «lugar do ócio». Tomá‑la enquanto tal, neste século absurdo de um capitalismo triunfante, é já, sem dúvida, um acto de desobediência civil. Pesar a legitimidade das suas consequências significa a recusa militante de todo o discurso neoliberal, responsável por esse ominoso incremento de uma política de mercantilização do sistema de ensino.
Mas a escola não é uma fábrica, o que não implica que a actividade ociosa de quem nela habita se confunda com o exercício da preguiça, esse indigente intervalo entre duas jornadas de puro embrutecimento do espírito. Pelo contrário, o ócio apela para o que há, na humanidade do homem, de essencial: a disponibilidade para aprender e pensar. Consequentemente, querer alimentar o negócio — o que nega o ócio — a partir de uma desnaturação empresarial do universo escolar é próprio de fariseus.
Tanto a escola como a fábrica são máquinas de projectar imagens sobre o mundo. Que a segunda esmague ideologicamente a primeira, eis o desastroso estandarte dos tempos que nos coube viver. Derrubá‑lo é, por certo, não só um imperativo moral, mas uma exigência estética.

Eurico de Carvalho


In «O Tecto»,


Ano X, n.º 64,


Agosto/2009, pág. 9.






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