sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O DEMOLIDOR DA RUA FORMOSA E O CORTO MALTESE DA ILHA DO FAIAL



I

A banda desenhada é inseparável do reino azul da infância. Para que lhe façamos a mais completa justiça, só nos resta despir, por um momento — de ousio ímpar —, o sisudo traje do editorial. Entreguemo‑nos, então, à nua fantasia da crónica, que há‑de trazer consigo, por certo, a perigosa vontade de vasculhar velhos papéis. Devemos lê‑los, de resto, com a demorada cautela do historiador incréu, que não ignora o complexo de superioridade da memória. Sem esquecer a metodologia do engano, bastar‑nos‑á, doravante, o brilho do itálico, a simpatia do leitor e o abandono do plural de modéstia.
II

Vivíamos num apartamento da Rua Formosa. Da primeira noite nunca quis o esquecimento: no interior de um guarda‑roupa de parede, descobrimos, por acaso, um sem‑número de revistas de cento e tal aventuras. Sem que o conhecêssemos, o inquilino que as deixara por lá, amareladas, levou‑nos involuntariamente a conhecer a Rua da Alegria. Eram os seus transeuntes, à data, para nós, crianças à volta do sonho, os semideuses das historietas com balões. (Disse‑lhes um dia um adeus precoce.) De todos eles, imensos, resta‑me a figura ágil e nocturna do Demolidor, um super‑herói sem superpoderes. A sua íntima fraqueza — ser cego — era a sua força. Isso, aliás, não me trazia apenas uma inquietação sem nome, cheia de vísceras, mas também me aprisionava o olhar e o futuro.
Ora, a partir dos dez anos de idade, sem que suspeitasse a natureza metafísica das suas consequências, comecei a ver o mundo através de lentes côncavas divergentes. (Agora sei, e é inútil, que são estas coisas, ditas pequenas, que fazem as grandes.) À medida que se acentuava a curvatura do cristalino e aumentavam as dioptrias, eu era levado a curvar‑me sobre mim mesmo como se fosse uma amêijoa num aquário de cinza. O ritmo de crescimento da minha vida interior correspondia por inteiro à dilatação dos olhos. (Talvez sejam irmãs a miopia e a tristeza para quem brinca na rua com receio de se ver sem os óculos e o olhar ao longe.) Dizem que a imagem se forma antes da retina. Nessa anterioridade, descubro a raiz de um mal maior: o insensível desvio do corpo pela teoria.

III

Que nexo lógico havemos de produzir entre a miopia da Rua Formosa, a cegueira do Demolidor e o véu da ignorância? Talvez o vislumbre infantil e filosófico de que o justo se conjuga superiormente com a ideia de que a fraqueza pode ser campeã e vencer a força. Ser forte era, afinal, estar junto dos fracos e não ter medo de lançar flores a leões.
IV

Trinta e três anos mais tarde, aterrando na ilha do Faial, abracei, pela primeira vez, Corto Maltese. Para celebrar o encontro e a chegada do seu magnífico e nublado veleiro à baía de Porto Pim, bebemos estrondosamente, e sem delongas de gente fina, um formidável gim tónico. Depois, contemplando a porta sempre aberta do Café Sport, enchemos a noite de lua cheia da Horta com as melhores palavras de um livro de marinheiros à solta. E, quando chegou a despedida, não quisemos que lágrimas e fotografias maculassem a divindade desse instante. Despedimo‑nos, pois, com a promessa de um adeus imortal. Sob a silente escolta de aves matutinamente bêbedas, foi muito curto o abraço, é certo, mas sóbrio.

V

Que última lição tirar de tudo isto? As aventuras do Demolidor e de Corto Maltese misturavam‑se alegremente com todo o corpo dos dias longos, dando‑lhes sangue bastante e salubre mistério. Assim, vendo o mundo aos quadradinhos, tornou‑se a vida, de novo, infinita.

Eurico de Carvalho
 In «O Tecto»,
Ano XI, n.º 72,
 Janeiro/2011, p. 3.

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