O RAPTO DA EUROPA
A crise é a figura grega do devir. Na realidade, o abandono do mito e da
imagem do tempo que se lhe associa, o grande círculo monótono das coisas que
sempre regressam ao princípio de si mesmas, feriu o coração dos homens com a seta irreversível da história. Com ela,
aprenderam a beber o veneno da novidade e da catástrofe. Tornou‑se obscura, por
isso mesmo, a possibilidade da inocência, que soube apenas refugiar-se sob a
roupagem abstrata da infância. Ensurdeceu, de vez, a voz que vinha de um
passado mais que perfeito — o clamor psicadélico do futuro. Fez-se ajoelhar a
natureza perante o altar da ciência e da técnica. Matou-se a noite maior com
estreitos filamentos de mil lâmpadas plenas de uma cega soberania. Poluiu-se o
silêncio com os tubos de escape da soberba ossificação do espírito objetivo.
Num passo inigualável para a miséria da cultura nascente, engrandeceram o
consumo ignaro da tralha eletrónica, dando-lhe o sulfuroso nome de mercado da
felicidade. Perdeu-se o ar sereno e próprio de um olhar limpo das poeiras
tóxicas da indústria da informação e do culto insano dos quinze minutos de fama
de Sua Majestade, o Eu. E tudo isto, que é verdade, não pode ser sequer
notícia, ainda que de rodapé, do telejornal da tarde.
Se ouvirmos, porém, o étimo original da crise, ver-se-á o perfil belicoso
de um sinal de viragem, que tanto assusta o gentio quanto promete o melhor a
quem lhe pede o pior. Entretanto, é certo, multiplicam-se os televangelistas
dos fluxos financeiros, quais zelotes do intangível. As suas sentenças sem lei
ressoam como bronze dentro das cabaças falantes dos inúteis e baços ministros
da Europa. Os povos assistem (em direto,
como convém) à derrocada de uma promessa. Sem que lhes acuda a memória do
punhal com que outrora tiranias morreram, assistem,
assistem, assistem… e continuam a assistir — à missa do último dia de um
projeto de bem-estar perpétuo. À espera dos capítulos que nem se lembram de
querer escrever. São os novos submissos de uma constituição absurda: a do facto
consumado. Há que lhes marcar, portanto, perante o tribunal da razão prática,
uma falta de comparência. Julgá-los-á o futuro, em nome dos filhos, pela greve
à sublime exigência de revolta, que sempre se impõe a todo aquele que, digno de
si, está disposto a perder a vida para salvar a palavra, não a trocando pela
côdea de pão seco com que o querem calar os senhores do dinheiro mundial. É
inaudível, todavia, para homúnculos de olhos grandes e pernas curtas, a
possibilidade de um grito que rasgue o véu da ignorância e do conformismo do
sofá das vinte horas.
Mas a crise pode ser também o alfobre secreto da esperança. Nesse caso,
configura-se, à revelia do espetáculo, como o instante solene em que o mundo
parece falar a linguagem do possível. Sair à rua passa a ser o gesto com que a
alma milita contra o real que vem de longe. Conversar com muito vagar volta a
trazer a alegria do diálogo que não acaba e recomeça, pois que nos agarra à
força com que vivemos juntos. Sorrir transmuda-se num convite à busca dialética
do saber. As pessoas decidem abrir a quem passa — sem pressa — os livros que
são. Nenhuma biblioteca pode arder sem que haja algures a garantia de uma cópia
segura, o que leva à vontade de partilhar a mais ínfima certeza acerca do reino
da experiência e da razão. Todos alimentam a fome de assinar o nome das vozes
em tudo o que existe e em silêncio permanece. Todos se dessedentam com a sede
gnosiológica dos insaciáveis. E adormecem sem medo dos sonhos do vizinho. O
sono santo e utópico que os possui revela, afinal, a morte do dragão do
capitalismo: o mimetismo do desejo, esse sangue impuro da máquina de fazer pobres
e infelizes.
Eurico de Carvalho
In «O Tecto»,
Ano XI, n.º 74, pág. 2.
Etiquetas: ENSAIO
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