terça-feira, 5 de novembro de 2013

COMO EVITAR QUE SEJAMOS REFÉNS DE UMA PEDAGOGIA CAPTURADA PELA TECNOLOGIA? ESBOÇO DE UMA RESPOSTA POLITICAMENTE INCORRETA



Para evitar que a pedagogia seja refém das Tecnologias da Informação e da Comunicação, é preciso destruir quatro ilusões: (i) a tecnocrática, (ii) a romântica, (iii) a epistemológica e (iv) a antropológica. No que se segue, pois, havemos de expor as razões que justificam a adequada qualificação destes itens.
Em relação à ilusão tecnocrática, há que dizer que o domínio das ferramentas inerentes ao desenvolvimento da Web 2.0 não é garantia, claro está, que delas se faça um bom uso pedagógico. Atentemos neste exemplo muito simples: controlar instrumentos de publicação no âmbito da Internet (v.g.: blogues) não é, nem pode ser, só por si, prova da qualidade daquilo que se publica. E se assim é, de facto, o incremento das competências digitais, que é desejável, naturalmente, não pode substituir o ensino das competências básicas (ler, escrever e contar) nem sequer camuflar as deficiências da sua aprendizagem.
No que diz respeito à ilusão romântica, convém afirmar que não podemos admitir a ingenuidade de quem defende o caráter «democrático» do processo de ensino e aprendizagem, no qual professores e alunos seriam parceiros a colaborar de uma forma igualitária no terreno da construção do saber. Trata-se de uma ilusão perigosa, sendo ela, aliás, objeto de reabilitação hodierna, por força das potencialidades, ao nível da interatividade, das TIC. Na prática, podemos assistir a uma sobrevalorização da produção discente de conteúdos cuja relevância epistémica (isto é, do ponto de vista do saber) é, no mínimo, discutível — ou, tendo-a, se configura, porém, como fruto espúrio de mero plágio, com o consequente desrespeito pelos direitos de autor. Neste contexto, em particular, devemos ter cuidado com o uso pedagógico das chamadas «enciclopédias livres», das quais se destaca a Wikipedia, por ser a mais relevante. Como são o resultado da colaboração voluntária de sujeitos anónimos, coloca-se inevitavelmente a questão da sua fiabilidade científica.
Ter acesso à informação, que passa a estar à distância de um clique, não significa possuir conhecimento, que sempre pressupõe uma «digestão» intelectual capaz dos conteúdos a que acedemos, de molde a separar o verdadeiro do falso. A confusão entre os dois, que é bastante corrente, gera uma ilusão epistemológica especialmente nefasta sob a perspetiva de uma valorização do saber. Cabe à escola, sem dúvida, combatê-la tenazmente (em especial, junto dos alunos que se entregam à «preguiça mental»).
Como sabemos, a participação e interatividade dos utilizadores da Internet é a base da Web 2.0. Deste modo, os seus ideólogos consideram que estamos a assistir a um processo inédito na História da Humanidade: o desenvolvimento de uma «inteligência coletiva», cuja expressão seria a rede de conexões resultantes dessa interação de milhões de utilizadores da Internet, assimilando-a, por conseguinte, a uma espécie de «cérebro global». Os mesmos ideólogos também defendem que os serviços da Internet melhoram quanto mais as pessoas os usam, porquanto qualquer um de nós, segundo eles, pode criar conteúdos e avaliá-los.
Subjacentes a todas essas ideias, encontra-se uma grande ilusão antropológica: a de que todos os utilizadores da Internet se encontram no mesmo plano, tanto do ponto de vista dos seus conhecimentos como das suas competências, o que é falso. Daí que o ciberespaço seja também o território da desinformação e da irrelevância cognitiva e social de muitos dos seus conteúdos.
Por outro lado, os ideólogos da Web 2.0 consideram que o desenvolvimento da Internet, nas suas dimensões de interatividade e de livre acesso à publicação do que quer que seja, por parte dos seus utilizadores, promove a formação de novas redes de solidariedade orgânica, substituindo o eu pelo nós. Mas esta não é toda a verdade, atendendo à natureza consumista e materialista da sociedade em que vivemos. As chamadas «redes sociais», cujo exemplo maior é o Facebook, servem, em grande medida, como é sabido, os interesses narcisistas e exibicionistas dos seus utilizadores.
Na medida em que hoje a escola se depara com alunos que são «nativos digitais», propaga-se a ideia de que motivá-los pressupõe, simplesmente, dar resposta ao que lhes interessa, ou seja, o mundo virtual. Nesse sentido, pretende-se que a escola corresponda às suas necessidades e limitações que se consubstanciam, acima de tudo, no facto de eles revelarem períodos muito curtos de atenção. Deste modo, e exemplificando o que acabámos de dizer, em vez do texto, propõe-se o hipertexto.
Ora, para que a escola não corra o risco da irrelevância cultural e institucional, reduzindo-se a um mero reflexo do meio ambiente tecnológico em que vivemos, é preciso destruir as ilusões supracitadas. Não queremos com isto dizer, no entanto, que não seja possível um bom uso pedagógico das novas Tecnologias da Informação e da Comunicação. Sim, é possível, desde que não se caia na fácil demagogia de dar aos alunos o que eles pedem, descurando-se, destarte, a função essencial da instituição escolar: transmitir o património cultural da Humanidade, nas suas vertentes científica, artística e filosófica. Deste ponto de vista, a Web 2.0 é apenas um instrumento (aliás, excelente!) — e nunca um fim em si mesmo.

Eurico de Carvalho


In «O TECTO», Ano XI, n.º 74, Agosto de 2012.
In A Vaca Malhada, n.º 2, Março de 2015, pp. 21-22.


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1 Leituras da Montr@:

Blogger José Miguel de Oliveira disse...

Óptima reflexão Eurico, como é apanágio teu... Concordo em muitos aspectos enlevo o da desinformação que pode ser encontrada em dezenas de apontadores seguidos do google. Pesquisa por exemplo o poema "morre lentamente de Pablo Neruda" e vais encontrá-lo variadas vezes. Acontece que quem conhece a poesia de Neruda porque a leu desconfia (como eu). Se pesquisares muito vais descobrir que de facto ele nunca escreveu o "Morre Lentamente". Uma mentira contada muitas vezes...

4:46 da manhã  

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