sábado, 4 de março de 2023

O DESAPARECIMENTO DA NOITE


A notícia do Público sobre os altíssimos índices de poluição luminosa (cf. edição de 21 de Janeiro) dá‑nos uma imagem negra de Portugal. Com efeito, estamos entre os maiores poluidores da Europa, o que não deixa de ser escandaloso num tempo de crise energética!

Além de se afigurar um gigantesco obstáculo à investigação astronómica, a perda da noite constitui um desastre ambiental, cujas consequências negativas, por certo, para o futuro da Humanidade, ainda hão‑de ser objecto de um juízo que elucide a opinião pública e satisfaça a comunidade científica. (São evidentes, pelo menos, e para já, as perturbações do sono.) Mas o Homem só se tornou Homem, ao longo de milénios, nesta alternância — cósmica — de luz e treva. Ora, perante a perspectiva apocalíptica de um término de tal bipolaridade, é caso para fazer nosso o célebre verso de Álvaro de Campos: «Vem, Noite antiquíssima e idêntica», e devolve‑nos as estrelas do Universo!

Eurico de Carvalho

In Público, n.º 11 956 (24 de Janeiro de 2023), p. 4.

 P. S. — Após a publicação deste escrito, e em plena releitura d’A Cidade e as Serras, descobrimos um trecho suculento, a saber:

«Na Cidade (como notou Jacinto) nunca se olham, nem lembram os astros — por causa dos candeeiros de gás ou dos globos de electricidade que os ofuscam. Por isso (como eu notei) nunca se entra nessa comunhão com o Universo que é a única glória e única consolação da Vida. Mas na serra, sem prédios disformes de seis andares, sem a fumaraça que tapa Deus, sem os cuidados que, como pedaços de chumbo, puxam a alma para o pó rasteiro — um Jacinto, um Zé Fernandes, livres, bem jantados, fumando nos poiais de uma janela, olham para os astros e os astros olham para eles. Uns, certamente, com olhos de sublime imobilidade ou de sublime indiferença. Mas outros curiosamente, ansiosamente, com uma luz que acena, uma luz que chama, como se tentassem, de tão longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe compreender os nossos…» [Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras, 7.ª ed. (Lisboa: Círculo de Leitores, 1982), p. 128]. 

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